quarta-feira, 7 de março de 2012

#KONY2012: Causando Guerras Novas Enquanto Se Promove Paz em Lugares Aleatórios


- INTRODUÇÃO

Há dois dias, surgiu esse vídeo viral no YouTube, simplesmente entitulado "Kony 2012". É de uma organização chamada Invisible Children ("Crianças Invisíveis") que já existe há mais tempo e já fez outros vídeos e campanhas sobre o assunto (além de genuínos projetos sociais em Uganda). Mas como a maior parte das pessoas, eu só os conheci agora. E é sobre esse videozinho Kony 2012 que eu vou falar.

No geral, a proposta é simplesmente criar um movimento gigantesco e engajar o mundo inteiro numa "causa" específica. Mas quem é que decide que causa é essa...?

(link pro vídeo no YouTube AQUI, mas ele tem meia-hora e não é especialmente necessário pra compreensão desse post)


Representante do Invisible Children, Jason Russell.
Assumo o preconceito com modelitos alternativos, mas esse é o menor dos nossos problemas.


Vamos lá. Força pra levá-lo a sério.

Bem, comecemos pelo tal do Kony que deve ser popularizado. Joseph Kony, líder de um grupo revolucionário na Uganda. Conforme outras guerrilhas africanas, eles fazem uma porção de atrocidades: sequestram crianças, matam, estupram, torturam inimigos, mutilam seus rostos, decepam membros e mantém algumas crianças desfiguradas vivas pra dar a lição. E claro: sob essas circunstâncias, conseguem formar um amplo exército de pré-adolescentes sexualmente escravizadas e crianças com metralhadoras.

Curiosamente, esse grupo se chama "LRA", Lord's Resistance Army, ou O EXÉRCITO DE RESISTÊNCIA DO SENHOR. Apesar de soar meio cristão, ele envolve outras loucuras místicas e o tal Joseph Kony se proclama um porta-voz de Deus/Espírito Santo e médium espiritual. Não duvido que haja quem acredite nele. 

Somália, foto de 2011.
Pode ter certeza de que tem mais novo do que isso.
Não posso deixar de falar que na Libéria, nos anos 90, havia um GRUPO REVOLUCIONÁRIO CANIBAL QUE LUTAVA PELADO E COM MÁSCARAS

Por quê? Porque antes dos conflitos, eles COMIAM O CORAÇÃO DE UM BEBÊ e acreditavam que isso os deixava invencíveis e sem necessidade de aparatos de proteção. Vale lembrar que, além desse misticismo insano e adoração ao líder, todos também deviam alucinar por causa do vício lunático em heroína. Tudo isso pode parecer mentira, mas é sério mesmo: o líder era conhecido como General Butt Naked ("General Bunda de Fora"), mas seu nome é Joshua Milton Blahyi e você pode pesquisar por aí. Hoje em dia, ele é um simpático pastor socorrendo a juventude de sua cidade... com o passado mais estranho de todos os tempos.

Enfim, desviei um pouco do tal Kony mas foi só pra lembrar que vários cantos da África vivem situações tão doentes e absurdas que chegam a ser meio surreais. Sinceramente, Uganda não parece ser das piores. Mas o tal Joseph Kony é definitivamente engajado em uma série de atrocidades, e por isso é considerado o top maior criminoso pela sua extensa lista de crimes contra a humanidade e essas coisas. 

Pois é, a moral dessa longa introdução é que é impossível negar que se deve parar esse cara. Mas ainda assim, tem algo muito estranho nessa súbita campanha viral pra mobilizar a juventude americana. E muitas vezes, boas causas são defendidas com péssimos argumentos… ou até mesmo péssimas intenções.

- ALEATORIAMENTE SE METENDO NO PAÍS DOS OUTROS

Ah, os Estados Unidos adoram se meter aleatoriamente no país dos outros. Financiam golpes de governo, ditaduras, vendem armas pra todos os lados e ocasionalmente saem em grandes cruzadas democráticas pra salvar o mundo de ditadores árabes que, por acaso, têm toneladas de petróleo nas mãos.

Daqui do Brasil (!), o camarada Obama ordenou
a "intervenção" na Líbia.

Dessa vez, na Uganda, parece não ser o caso. Aparentemente, nessa terra infeliz, nem tem nada que possa interessar aos EUA além da venda de mais armas e o pouco dinheiro corrupto que circula por lá. E isso talvez não seja tão esquisito, porque na verdade não foi o Governo Americano que desenvolveu esse vídeo. Foi um completo idiota.

Mas talvez, um completo idiota sob ordens mais espertinhas. Porque na verdade, há um tempo, descobriram reservas de petróleo em Uganda. E já em 2011, tavam suspeitando que a súbita preocupação dos EUA com o país estivesse com algumas segundas intenções (link de um texto de 2011 AQUI).

Mas enfim, voltemos ao "idiota". É complicado explicar sem que a pessoa tenha assistido ao vídeo de meia-hora, mas eu tento: ele é uma grande palhaçada apelativa e hipócrita com uma aparência jovem e descolada que mais parece fazer um comercial do Facebook. (e de fato, toda a estrutura do documentário é baseada nas propriedadezinhas da nova timeline)

O idealizador Jason Russell e seu filho. Sério mesmo: essa cena tá no vídeo.
Nada como a decência e a civilidade americana...
ASSIM, tem algo muito errado num pseudo-documentário sobre a situação dos jovens da Uganda em que a figura mais participativa é um loirinho americano de 5 anos. É como se ter pena de crianças africanas mutiladas fosse meio irrelevante ou desconfortável demais e por isso precisamos projetar nosso horror em alguém mais "próximo" e saudável. No negócio inteiro, aliás, a única pessoa da Uganda que é vagamente ouvida pra dar suas opiniões é um tal de Jacob, que foi meio adotado pelo Jason Russell aí.

Pra dar uma ideia, o próprio povo ugandense achou o vídeo escroto. (leia sobre AQUI: "Vítimas de Kony reprovam vídeo e sessão tem protestos em Uganda")

Ou seja: esse vácuo manipulativo não tem intenção de explorar a situação do povo da Uganda, da LRA ou do governo local. Na verdade, tudo isso é simplesmente uma campanha pra pressionar os Estados Unidos pra ir lá matar o tal Kony. E depois jogar o corpo no mar e todos comemorarem numa cerimônia perturbadora como foi com o Osama Bin Laden.

Pessoal do Invisible Children achando irado tirar foto com as armas dos rebeldes.
Talvez não sejam as pessoas mais maduras do mundo pra lidarem com isso...
Numa divertida notícia mais recente, depois do sucesso do vídeo Kony 2012, Jason Russell foi preso quando encontrado na rua "depredando carros, masturbando-se e provavelmente sob a influência de alguma substância" (leia AQUI). Pra alguns, isso pode colocar em questão a índole desse sujeito perturbado. Mas a organização Invisible Children declarou que aquela havia sido uma semana de "grande desgaste emocional" pro homem. Beleza. Eu chamo isso de COLAPSO DE PERSONALIDADE DEVIDO A LAVAGEM CEREBRAL DE MANIONETES CONTROLADAS PELA CIA. Mas teorias são teorias.

Bem, voltando ao assunto: é óbvio que de um jeito ou de outro a situação da Uganda merece atenção (assim como a de vários outros lugares que seguem ignorados por anos e anos). Mas essa súbita mobilização pra pressionar o assassinato de um inimigo escolhido a dedo é extremamente assustadora se você for parar pra refletir sobre manipulação e distopias totalitárias, onde o povo sempre precisa se ocupar com alguém ou um grupo pra perseguir. Enquanto os poderosos seguem livres pra fazer a festa.


Agora, podem até estar clamando pela morte de um cara verdadeiramente malvado. Mas quando não se pesquisa decentemente, as pessoas logo são colocadas pra perseguir inocentes, como foi com os judeus na Alemanha nazista.

A questão não tá sendo tratada com o menor cuidado e não passa de um sensacionalismo superficial que acha que a Uganda está na merda porque um homem nasceu com muita maldade e se alguém matá-lo tudo vai ficar bem - aliás, como se o próprio governo não fosse violento, abusivo e corrupto. E é esse tipo de raciocínio medíocre e limitado que tá sendo promovido aí.

E enquanto os caras ganham dinheiro, aliás! Pois afinal, boa parte das doações são pro sustento da própria organização.

Veja por exemplo: a instituição do vocalista do U2, Bono Vox, só repassa 1% (SIM, UM) de suas doações. Todos os outros 99% (SIM, NOVENTA E NOVE) ficam pra pagar os funcionários e financiar as próprias campanhas. (leia sobre AQUI)

Enfim, além da possibilidade disso ser um emprego inescrupuloso e de promover uma linha de raciocínio medíocre e superficial, o vídeo tem também um escrotíssimo sentimento burguês de "somos superiores e precisamos salvar os selvagens". Por exemplo, aparece uma filmagem do narrador (Jason) na Uganda reagindo com perplexidade quando sabe da situação das crianças lá. Ele fala isso: 

"E isso acontece todo dia na África? Nossa, se acontecesse na América seria capa da Newsweek!!!"

E essa frase mesquinha, alienada e pretensiosa serve como o nobre motivo pra grande saga do nosso herói desenvolvedor do vídeo. E é óbvio que com orgulho e alienação surge a hipocrisia. Em dado momento "impactante", ele vira pra toda uma audiência numa palestra e solta a seguinte frasezinha escrota de auto-ajuda:

"Quem é você pra parar uma guerra? E eu digo: quem é você pra NÃO parar?"

E então, com isso, ele sugere que a juventude americana deve se mobilizar de várias formas descoladas e internéticas e artisticamente ~alternativas~ pra subitamente mandarem o governo dos EUA ir lá pra Uganda um ano depois de terem descoberto uma gigantesca reserva de petróleo. Tudo isso, supostamente, pra matar um cara sem nem se dar o trabalho de entender a situação do país ou a opinião nativa.

E TUDO ISSO COMO SE OS EUA JÁ NÃO TIVESSEM LÁ SUA PRÓPRIA COTA DE CRIMES DE GUERRA.

- OS EUA E SUAS PRÓPRIAS DESGRAÇAS

Abu Ghraib, Iraque, 2004.
Acredite: essa foi a foto mais leve que eu achei pra colocar aqui.
Nos últimos 10 anos, os EUA têm arrumado todo tipo de desculpa pra se intrometer no Oriente Médio. E enquanto um grupo de idiotas quer fazer uma enorme mobilização pacífica pra pressionar o governo a resgatar Uganda (causa perfeitamente válida, mas: !?!?), os EUA invadem o Iraque contra a ONU, abrem uma prisão militar de tortura experimental em Guantánamo, matam um cara e desaparecem com o corpo, bombardeiam a Líbia e agora ainda tão loucos pra se meterem no Irã

Isso sem falar na situação decadente dos PRÓPRIOS AMERICANOS. Inclusive, dizem até que a possível guerra contra o Irã é mais pra distrair o povo da CRISE. Mas talvez a guerra venha a calhar, e então pra distrair o povo da guerra que distrairia o povo da crise, eis que surge uma nova distração com essa história de Uganda completamente sem mais nem menos. (embora isso não tenha ligações diretas com o governo, como eu disse, as teorias de conspiração tão aí pra chamar essas coisas de ferramentas de manipulação social...)

Enquanto se preocupam com a África, lá está a polícia metendo o pau nos manifestantes de Wall Street e colocando o FBI atrás de ativista.

Enquanto ficam repassando videozinhos comoventes no YouTube, a liberdade de expressão na internet vai sendo sufocada com SOPAs e PIPAs da vida.

Enquanto se preocupam com direitos humanos em Uganda, lá estão os direitos civis americanos rasgados com a aprovação do Decreto de Autorização de Defesa Nacional. Pois é, aquele que permite que o governo pegue qualquer pessoa em território americano pra prendê-la em prisão militar sem nennhum direito a julgamento ou simplesmente assassinar alguém por motivos secretos. (falei sobre AQUI)

Foto simbólica do atual campo de detenção em Guantánamo.
Pode acreditar que também tem fotos mais desagradáveis pra colocar aqui.

Ou seja: no final das contas, por mais bem-produzido e TALVEZ bem-intencionado que esse vídeo seja, ele quer mobilizar o juventude americana pro menor dos problemas que eles têm no momento. Repito: as crianças de Uganda não vão nada bem. Mas depois de décadas de enrolação, querer criar uma mobilização em massa pra resgatar um outro país enquanto o próprio se afoga em merda (e leva o resto do mundo junto) é no mínimo idiota. 

Mesmo trazendo atenção pra uma causa mais do que válida, esse vídeo no final continua promovendo o "pensamento de ovelha" de meter todo mundo numa grande mobilização social que ninguém sequer entende ou tem a oportunidade de entender. O vídeo não discute a situação da Uganda. O protagonista é um loirinho de 5 anos. O vídeo promove a morte de um cara que não passa de um símbolo de um problema certamente muito mais complexo. Simplesmente matá-lo, ou "parar o Kony", não resolveria metade dos problemas da própria Uganda e muito menos de toda essa crise socio-econômica internacional.

No final, o vídeo apenas pega uma causa óbvia que está aí há anos e decide trazê-la à tona com força total enquanto o mundo sofre nas mãos de ameaças muito mais atuais e aterradoras. A ameaça de uma população ovelha, alienada, que não pensa ou pesquisa por conta própria e se mobiliza com boníssimas intenções pra promover um assassinato do outro lado do oceano... enquanto na própria casa, perde cada vez mais os próprios direitos. 

Deixa os caras de Wall Street ganharem sua graninha honesta.
Agora vamos escolher alguém malvado na África e pressionar o governo pra matar.




2 comentários:

  1. texto amável. Criticas plausíveis e muito bem justificadas.

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  2. Bacana André. Bem escrito e esclarecedor. Por coincidencia ví este vídeo esta semana. Ao mesmo tempo que a história me tocou, fiquei com uma "pulga atras da orelha" achando tudo "bunitinho dimais". Os links que vc colocou são ótimos.
    Abraço do Tio.

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